O CORPO DEFORMA

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MARIA CRISTINA CASTILHO DE ANDRADE

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MARIA CRISTINA CASTILHO DE ANDRADE

Veio à reunião da Pastoral da Mulher a convite de uma das assistidas que ouvira as tragédias dela e a dor atual. Não senti, em seu olhar, curiosidade, surpresa ou qualquer tentativa de se fazer próxima do grupo que ali estava. As mulheres também não se surpreendem ou se incomodam com as que chegam, principalmente se estiverem envoltas em desencanto.

Ao final da reunião, como acontece com todas que nos procuram pela primeira vez, colho as informações necessárias para inseri-las ao grupo. Quebrou de imediato a couraça e foi dizendo, sem defesas ensaiadas, o motivo de estar conosco e os desatinos de sua história.

Voltara para seu Estado de origem, após não dar certo, em determinado momento, do lado de cá, e acabou retornando. Não distinguiu, em estrada alguma, a placa que indica a terra onde “mana leite e mel”.

Dos 11 anos para baixo, é capaz de reconstruir, na memória vaga, algumas belezas de sua terra. A população não chega a 70 mil habitantes e foi o rio, tão próximo e tão cheio de vida, que permitiu a agricultura e a pecuária e fez surgir o pequeno povoado onde nasceu. Cidade da pedra branca. Recorda-se das festas religiosas e populares: a Feira dos Caxixis, do Bom Jesus da Lapa, de marujos. E das músicas também, como as de Luís Gonzaga: “Asa Branca”, “Pau-de-Arara”, “Xote das Meninas”. Naquele período via-se, no futuro, como professora ou advogada. Era o seu sonho misturado aos contos de fada.

A partir dos 11 anos, perdeu o gosto ingênuo e as lembranças de seu infortúnio a amargaram: o filho do patrão da mãe a estuprou. Não pôde gritar ou denunciar. A mãe era austera e não acreditaria que não fora ela a culpada. Aos dezesseis anos, engravidou do tal. A mãe a condenou e a expeliu para a margem. Caiu na noite. Anos depois, encontrou uma pessoa, mais nova do que ela, que se dispôs a viverem juntos. Ficaram um tempo, no qual ela imaginara que seria para sempre, até que ele a trocou por uma outra, mais velha do que ela, mas que possuía algum dinheiro. Na despedida dele, perdeu a ilusão antiga depositada em cada mesa dos cabarés: a de alguém que cuidasse dela e de quem ela cuidasse, a de um cantinho para alinhavar com ternura o entardecer.

Para vir à tona da queda na angústia, buscou novamente Jundiaí. Sente muita solidão, tristeza. Próxima dos 60 anos, diz do corpo deformado pela idade. Diz das varizes que marcam com sangue escuro as suas pernas e lhe retêm o desejo de caminhar apressada para outros rumos. Como doem a alma e as varizes dela!

Das festas de sua infância, marcou-a mais as de São João Batista com cantos, danças folclóricas, fogueiras, quentão, licor de jenipapo, canjica de milho verde, pamonha, bolos de aipim. Comenta e sorri bonito.

Fico pensando: Zacarias, Isabel, São João Batista, ela e a Pastoral da Mulher. O corpo deforma sim e fica estéril, mas a alma pode engravidar os dias de esperança. É essa a missão da Pastoral da Mulher, tirada do nome “João”: Deus é favorável.

MARIA CRISTINA CASTILHO DE ANDRADE – Professora, coordenadora da Pastoral da Mulher na Diocese de Jundiai – SP- Brasil. Autora de ” Nos Varais do Mundo/Submundo” – Edições Loyola

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