Minas exige recursos das novas concessões das ferrovias

592

Autoridades questionam regras da renovação e unem esforços para manter investimentos na retomada ferroviária do Estado.

Ao justificar renovação antecipada de contratos, União fala sobre novos investimentos e modernização do setor Álbum de fotos Ao justificar renovação antecipada de contratos, União fala sobre novos investimentos e modernização do setor – Foto: Luiz Santana

Antes que a greve dos caminhoneiros escancarasse a insuficiência da malha ferroviária do Brasil, com todos os problemas de logística e mobilidade ocorridos em maio deste ano, o tema já estava em pauta na União. O objetivo era e continua sendo a renovação de contratos de concessões das ferrovias dez anos antes do vencimento.

Mas o que poderia ser feito sem grande participação social – em que pese a exigência legal da realização de audiências públicas – ganhou os holofotes diante da paralisação total dos transportes. E virou polêmica. Para Minas, a grande questão é que a proposta do governo federal destina a outros Estados recursos da renovação de trechos mineiros.

Há outros pontos legais questionados por especialistas e autoridades, como a própria vantagem ou não da renovação, em comparação com novas licitações. E também há críticas à falta de transparência das informações e à não priorização do transporte de passageiros.

“O que temos hoje são corredores de exportação, sobretudo de minério, produto que corresponde a mais de 90% de tudo o que é transportado. E todas as ações do governo federal focam em melhorar ou expandir isso. O transporte de passageiros e de cargas gerais, que interessa à população e foi afetado pela greve dos caminhoneiros, não é considerado”, critica André Tenuta, diretor da ONG Trem.

Das cinco malhas em estudo para renovação, três passam por Minas: a Malha Regional Sudeste, da MRS Logística; a Ferrovia Centro Atlântica (FCA), da VLI; e a Estrada de Ferro Vitória a Minas (EFVM), da Vale.

Comissão – A Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) vem acompanhando essa discussão e, mais que isso, tem reunido instituições e especialistas no intuito de exigir mudanças nas regras de renovação, visando ao interesse do Estado.

Os debates estão sendo feitos pela Comissão Extraordinária Pró-Ferrovias Mineiras, criada em junho deste ano.

“O Legislativo já vinha debatendo a questão das ferrovias, da mobilidade. E todo esse tempo acompanhando essa discussão nos possibilitou firmar uma posição. A renovação das concessões, na forma proposta, é péssima para o Brasil e não recupera a logística ferroviária de Minas Gerais”, sentencia o presidente da comissão, deputado João Leite (PSDB).

André Tenuta aponta que a comissão permitiu a retomada do debate de forma mais enfática e com a população mais atenta, abrindo possibilidades para “ganho real”.

“Se, ao final, um vagão de passageiro for acrescentado a um trem de carga, já teremos um ganho”, destaca, referindo-se a tema já tratado em outra reportagem desta série sobre ferrovias.

União ressalta a antecipação de investimentos

Os contratos de concessões das ferrovias no Brasil foram firmados no final dos anos 1990, com validade de 30 anos. Portanto, ainda estão a quase dez anos do vencimento. A União, porém, decidiu renovar cinco contratos agora, com as mesmas concessionárias, por mais 30 anos além dos dez anos faltantes. A principal vantagem seria a antecipação de investimentos.

Ao justificar a Medida Provisória 752, de 2016, que propôs a renovação antecipada dos contratos, o Ministério dos Transportes, Portos e Aviação Civil, cita a “realização imediata” de novos investimentos e, ainda, o saneamento de contratos vigentes que se mostraram inviáveis do ponto de vista da exploração do serviço.

A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) sinaliza também para a retomada de investimentos e modernização do setor ferroviário no Brasil, com expansão da capacidade e da segurança. A agência menciona, ainda, a adequação dos contratos às boas práticas de regulação e a ampliação do compartilhamento de infraestrutura e de recursos operacionais entre concessionárias.

A Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários (ANTF) também é favorável e cita previsão de investimentos de R$ 25 bilhões em cinco anos pelas concessionárias, além da geração de 40 mil empregos diretos. A ANTF prevê ainda que, a partir da prorrogação dos contratos, o modal ferroviário passe a responder, até 2025, por 31% do transporte de cargas no Brasil, contra 15% em 2015.

Esses recursos da iniciativa privada seriam ainda mais relevantes diante do quadro de congelamento dos investimentos públicos, imposto pela Emenda Constitucional 95, de 2016, conforme ressaltou o ministro dos Transportes, Valter Casimiro Silveira, em evento da ANTF.

ADI questiona lei que trata da renovação

A Medida Provisória 752, que abriu espaço para as renovações, foi convertida na Lei 13.448, de 2017, que já sofre questionamentos no Supremo Tribunal Federal (STF), ainda sem decisão. A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.991 foi proposta pela Procuradoria-Geral da República (PGR) e requer medida cautelar contra dispositivos da norma considerados lesivos ao interesse público.

Como três malhas incluídas na renovação passam por Minas, a Advocacia-Geral do Estado (AGE) ingressou como parte interessada na ADI. O procurador Cássio Andrade afirma que os questionamentos da PGR coincidem com os da AGE. Ele cita a possibilidade de incorporação de bens da União pelas concessionárias e a flexibilização da fiscalização dos contratos originais de concessão.

“As concessionárias têm que prestar serviço eficiente e seguro, o que deve ser fiscalizado pela ANTT por meio de relatórios anuais. Só é possível prorrogar o que funcionou a contento. Mas a norma reduziu esse prazo de fiscalização para os últimos cinco anos a partir do pedido de prorrogação. Quem ficou inadimplente lá atrás estaria perdoado”, critica.

Segundo o procurador, a Lei 13.448 exige, além de investimentos, a comprovação da vantagem do processo, mas sem trazer elementos objetivos para essa mensuração. “Até agora, não sabemos se uma nova licitação, com cobrança de outorga, seria mais vantajosa. O Ministério da Fazenda entrou com parecer junto à ANTT apontando justamente que a competitividade poderia gerar um valor maior pelas ferrovias”, aponta.

A AGE, segundo ele, está produzindo novos dados, entre os quais o valor real da outorga da EFVM. “Há levantamentos com valores de até R$ 40 bilhões”, frisa. “O fato concreto é que a alternativa da relicitação não chegou efetivamente a ser analisada, nem de longe”, reitera a ONG Trem, em documento encaminhado à ANTT.

TCU – Em outra frente de atuação, o deputado João Leite, que preside a comissão da ALMG, reuniu essas questões em uma denúncia formulada ao Tribunal de Contas da União (TCU), que dá a autorização final sobre a renovação dos contratos.

O documento é assinado também pelo deputado federal Fábio Ramalho (MDB-MG).

“A Lei 13.448 é um descalabro. Ela rasga os contratos dos anos 1990 no que tange aos compromissos assumidos. E as concessionárias também podem vender o patrimônio e ficar com os recursos”, critica André Tenuta, da ONG Trem. Ele aponta, ainda, a falta de garantias e exigências quanto ao transporte de passageiros.

Contraponto – A ANTT, via assessoria de imprensa, ressalva que a questão do transporte de passageiros foi discutida nas audiências públicas e que serão promovidos “ajustes nos estudos, de forma a resguardar o interesse público”. Quanto aos aspectos da lei que constam da ADI, a Agência reitera que eles ainda estão em plena validade.

Atualmente, a Agência está na fase de avaliação de todas as contribuições encaminhadas pela sociedade. Essas sugestões, segundo a ANTT, poderão subsidiar eventuais melhoramentos sob todos os aspectos, inclusive valor de outorga e análise da vantagem de prorrogar em comparação a licitar. Nesse caso, porém, há um parecer específico para cada contrato.

Investimento cruzado prejudicaria Minas

Em que pesem todos os problemas apontados na renovação antecipada dos contratos, o ponto nevrálgico para Minas Gerais é o chamado investimento cruzado, que permite a destinação para outros Estados de recursos obtidos com a renovação de malhas “mineiras”.

Pela proposta da União, em troca da EFVM e da Estrada de Ferro Carajás, a Vale construiria a Ferrovia de Integração do Centro-Oeste (Fico), em Mato Grosso. Já a MRS faria trecho do Ferroanel, em São Paulo.

Entre as ferrovias que cruzam Minas, a EFVM é que está em estágio mais avançado no processo de renovação. A fase de audiências públicas, que contou com três encontros em Minas (BH, Ipatinga e Governador Valadares), foi encerrada, assim como o prazo para envio de contribuições pela internet.

O procurador da AGE, Cássio Andrade, detalha que do total de aproximadamente R$ 9 bilhões a serem investidos pela Vale, Minas teria apenas R$ 426 milhões, destinados à redução de conflitos urbanos(R$ 373 milhões) e à criação de uma segunda linha entre a Pedreira Rio das Velhas e Capitão Eduardo. Já a Fico levaria cerca de R$ 2,6 bilhões.

“A maior parte dos recursos, cerca de R$ 5 bilhões, estão destinados à manutenção da linha, o chamado sustaining. A Vale coloca isso como investimento, mas ela teria é que fazer isso por conta própria. A AGE entende que é obrigação contratual da concessionária manter a eficiência da prestação de serviço”, aponta o procurador.

Para André Tenuta, trata-se de uma “distorção semântica” da palavra investimento, usada no lugar de despesa. “Seria como você trocar a lâmpada que queimou na sua casa e dizer que está investindo”, compara.

De acordo com a ANTT, não há ainda uma posição definitiva sobre esse tema. A Agência reforça que os questionamentos oriundos das audiências públicas estão sendo avaliados e serão objeto de análise detalhada feita por seu corpo técnico.

Travessia sobre os trilhos traz risco para população

Os conflitos urbanos, segundo Cássio Andrade, também deveriam ser solucionados independentemente da renovação dos contratos. Eles envolvem, por exemplo, cruzamentos das linhas férreas com avenidas, como ocorre em Betim, na RMBH.

Da mesma forma, englobam travessia de pedestre sobre os trilhos, como no Bairro São Geraldo, Região Leste de BH. Ali, moradores entram e saem por um buraco no muro de proteção da EFVM. A poucos metros está a passarela, mas a longa rampa parece justificar a decisão de “cortar caminho”, apesar do risco.

De acordo com a ANTT, o Decreto Presidencial 1.832, de 1996, que estabeleceu as bases dos contratos de concessão da década de 1990, prevê que a obrigação de solução do conflito entre os municípios e a ferrovia é daquele que veio depois. “Assim, na maioria dos casos, como a ferrovia antecedeu a municipalidade, a regra atual é de que o município é o responsável pela solução do conflito que advém da expansão urbana em direção à faixa de domínio das ferrovias.”

Ainda segundo a agência, com a possibilidade da renovação dos contratos, a solução desses conflitos passou a ser um encargo da concessionária, com prazo definido para sua execução e regras contratuais de penalidade pelo seu descumprimento.

Prazo – A Vale não comentou os questionamentos. As demais malhas que passam por Minas estão em fases anteriores do processo de renovação. A previsão da ANTT é de que as audiências públicas relativas à MRS e à FCA sejam iniciadas neste mês de novembro.

Recursos podem ir para modal rodoviário

O processo de renovação da concessão da FCA ainda está no começo, mas outra questão envolvendo a concessionária, hoje a VLI, engrossa a polêmica sobre os contratos das ferrovias. Penalizada por não zelar por parte da malha que arrendou, a empresa terá que pagar uma indenização, mas os recursos podem acabar em obras rodoviárias.

O diretor da ONG Trem, André Tenuta, explica que dos quase 8 mil quilômetros da FCA, 1.700 já estavam desativados em 2011. A indenização, porém, refere-se a 740 quilômetros. “Não há fiscalização. Metade da malha concedida às empresas privadas nos anos 1990 não é usada porque não leva a portos. Boa parte está em vias de desaparecer”, lamenta, ampliando o foco para todas as concessões.

Para ele, essa “multa” da FCA, estimada em R$ 1,2 bilhão em valores atuais, teria que ser aplicada nas ferrovias. “É uma oportunidade, porque a renovação antecipada do contrato com a VLI depende da solução desse passivo. Mas as obras listadas foram de interesse da própria operadora. R$ 150 milhões já foram torrados em pátios da empresa”, reforça.

A lista inicial das obras, prevista na Resolução 4.131, de 2013, foi modificada em 2015 e 2016, mas permaneceu o foco em passagens de nível, para solução de conflitos urbanos, além de oficinas e pátios. Até o Ministério Público Federal em Minas propôs uma grande obra, um viaduto no Anel Rodoviário de Belo Horizonte, na altura do Bairro Betânia.

Fundo – O procurador federal Fernando Martins salienta que a obra foi proposta para garantir a possibilidade do investimento em Minas, diante do impasse entre concessionária e União. Segundo ele, as tratativas avançaram para a composição de um fundo, que receberia todos os recursos.

“A FCA só poderia acessar esses recursos para realizar obras listadas no acordo, que envolve também os estados de São Paulo e Rio de Janeiro”, aponta. Segundo ele, os mecanismos de uso dos recursos ainda serão definidos com a ANTT, mas uma das exigências seria o vínculo com a área ferroviária.

No caso do viaduto no Anel Rodoviário, ele seria feito na intercessão com uma passagem de nível da própria FCA. Além dessa obra, num primeiro momento, os recursos devem cobrir a reforma de pátios, já realizada em Minas e São Paulo, a restauração de um trecho de 36 quilômetros de malha no Rio de Janeiro e a solução de conflito urbano em Betim – única obra da lista original.

O procurador Cássio Andrade aponta que a AGE já teve deferido pedido de vista do processo da FCA, que tramita na Justiça Federal. “Minas vai requerer o ingresso, como parte interessada. Estamos diante de decisões políticas que atingem o pacto federativo, e cada estado tem suas demandas”, reforça, salientando a importância da mobilização social feita pela comissão da ALMG.

Para a ONG Trem, os recursos da FCA deveriam entrar na malha, mas não em corredores de exportação. “A multa refere-se a trechos mineiros. Então tem que ser investida nesse trecho, levando passageiros. Também queremos uma ligação direta com São Paulo, para atender as indústrias do Sul de Minas”, reforça o deputado João Leite.

Sobre a crítica à falta de fiscalização, a ANTT argumenta que tem instaurado diversos processos administrativos para apurar descumprimentos contratuais, especialmente com relação ao abandono de trechos e à negligência de manutenção.

Muitos desses processos, segundo a Agência, culminam em penalidades de advertências e até multas, mas após o trâsito em julgado no âmbito administrativo, as concessionárias recorrem ao Judiciário, onde os casos se arrastam por anos.

A VLI não comentou os questionamentos. Afirmou apenas que “a FCA cumprirá o que for determinado pelos órgãos responsáveis e está sempre disposta a analisar e contribuir com iniciativas que aprimorem a logística e a mobilidade das localidades onde atua”. Até o fechamento dessa matéria, não recebemos retorno do TCU e do Ministério dos Transportes.

MARIA CÉLIA PINTO - ALMG

FAÇA UM COMENTÁRIO

Por favor digite um comentário
Por favor digite seu nome aqui